A ineficiência do Estado nos processos de crimes de estupro
O atual Código Penal Brasileiro trata o estupro como sendo o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, cuja pena é de reclusão, podendo variar entre 6 e 10 anos. Ainda, caso da conduta resulte lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 ou maior de 14 anos, a pena é aumentada entre 8 e 12 anos de reclusão ou, se resulta em morte, de 12 a 30 anos.
Além da previsão de crime no Código Penal, o estupro está inserido no rol de crimes hediondos, consoante artigo 1º, inciso V da Lei 8.072/90, os quais possuem maior reprovação por parte do Estado, sendo insuscetíveis de anistia, graça, indulto e fiança. A progressão de regime para esses crimes, diferentemente dos demais que, a depender de outras circunstâncias, seria possível mediante cumprimento de 1/6 da pena, se dá somente após o cumprimento de 2/5, se primário, e 3/5, se reincidente, dentre outras medidas consideradas mais drásticas.
Desde o advento da Lei 13.718, de 2018, portanto, considerada ainda lei nova, a ação penal para apurar qualquer prática de crimes contra a liberdade sexual, inclusive o estupro, que aqui tratamos, é pública incondicionada à representação, ou seja, independe da vontade da vítima para que aquele apontado como agressor se veja processado. Contudo, é certo que nem sempre foi assim.
Se entre os anos de 2009 e 2018 a Lei 12.015 trazia que a ação penal era ao menos pública condicionada, praticada pelo Estado, contudo, mediante manifestação de vontade da vítima em ver o agressor processado, antes, desde 1940, a ação penal era privada, quando era a própria vítima a titular da ação penal ou, na falta de sua capacidade, seu representante legal, o que se fazia mediante queixa crime através de advogado. Conforme a exposição de motivos do Legislador de 1940 em justificar a ação penal privada para aqueles casos à época, dizia que:
“Em abono do critério do projeto, acresce que, hoje em dia, dados os nossos costumes e formas de vida, não são raros os casos em que a mulher não é a única vítima da sedução. Já foi dito, com acerto, que “nos crimes sexuais, nunca o homem é tão algoz que não possa ser, também, um pouco vítima, e a mulher nem sempre é a maior e a única vítima dos seus pretendidos infortúnios sexuais” (Filipo Manci, Delitti sessuali)”
Consoante se vê, as inovações legislativas para coibir as práticas de estupro tiveram relevante progresso a partir do endurecimento de penas, tendo alterado a própria visão de vítima e agressor, além da ação penal que, agora, basta a possível prática do crime para que a polícia dê início às investigações; ao agressor, cabe a certeza de que praticar conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso sem consentimento da vítima, será processado.
Por outro lado, se a intenção de dar efetividade às ações penais vem surtindo efeito, ao resultado dessas ações não se pode afirmar o mesmo. Inúmeros são os casos em que alguma das partes envolvidas no processo criminal termina prejudicada. A certeza quanto a culpabilidade daquele apontado como criminoso é tão precária que, sequer, existem estudos que fundamentam a quantidade de erros processuais nos casos de estupro, no que, a forma com que são apurados, mostra suficiente para afirmar, pelo menos, que esses erros existem e não são poucos.
O caminho que se leva para apurar a responsabilidade criminal nos casos envolvendo a prática de estupro, até a sentença final proferida pelo juiz àquele apontado como acusado, mesmo nos casos que deixam vestígios, de longe, mostra-se eficiente em aclarar a verdade real. Nas hipóteses em que não há como ter juízo de certeza, diga-se de passagem, a maioria, a ineficiência do Estado em aplicar um julgamento eficaz é ainda maior.
O exame de corpo de delito, como o próprio nome sugere, é realizado no corpo objeto da investigação como forma de apontar elementos materiais ou vestígios que indiquem a existência de um crime. No Código de Processo Penal, o artigo 158 determina que, “quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”.
Nos casos envolvendo prática de estupro, o exame de corpo de delito é prova que se faz necessária. Entretanto, há de ressaltar que nem sempre é possível comprovar a materialidade através deste exame, tendo em vista que os rastros somem rapidamente, isso nas situações em que há emprego de conjunção carnal, pois, quando se trata apenas de atos libidinosos, torna-se quase impossível.
Ocorre que, mesmo diante da capacidade de comprovar a conjunção carnal através do exame e, consequentemente, apontar vestígios de utilização de violência física, por mais uma vez a prova mostra-se frágil, tendo em vista os casos em que a própria vítima, com intenção precoce de incriminar o agressor, prepara o campo probatório almejando a robustez das alegações proferidas, mesmo quando, em tese, a relação é consensual, o que seria praticamente impossível de comprovar.
Em contraponto, a comprovação de conjunção carnal por meio de exame de corpo de delito e a ausência de violência física não poderia, por si só, ensejar motivos para absolver o acusado. Isso pois, sabe-se que não raras vezes o constrangimento por parte do agressor se dá mediante violência moral ou grave ameaça provocando mansa submissão da vítima, o que, evidentemente, não deixaria vestígios de agressão física.
Há, ainda, a utilização da genética forense como meio de prova, aplicada através da coleta de material genético, como, resíduos de pele do autor nas unhas da vítima, fios de cabelo, saliva e o próprio esperma. Neste caso, utiliza-se a comparação do material coletado logo em seguida à alegação de estupro com materiais do próprio acusado. Entretanto, sabe-se que nestes casos rege o princípio da não auto incriminação, protegendo o possível agressor da obrigatoriedade de produzir provas contra si mesmo.
Conquanto, a negativa em colaborar com as investigações, mesmo que não possa interferir na convicção do julgador, inverte o quadro probatório e, não raras vezes, leva à injusta condenação pela impossibilidade de se produzir provas negativas.
Outro impasse quanto à coleta de material genético é o tempo que a vítima geralmente leva para encorajar-se a apontar o suposto agressor. Quando isso ocorre, compromete-se a qualidade dos comparativos de exames genéticos, sendo que em alguns casos chega a ser impossível de serem realizados.
A prova testemunhal, prevista no Código de Processo penal entre os artigos 202 e 225, quanto às acusações de estupro, mostra-se, na maioria dos casos, ainda mais ineficaz. Consagrado como um dos mais antigos meios de prova, o testemunho de quem afirma ter presenciado os fatos, assim como dos que atestam não terem ocorrido, em que pese a prestação do compromisso em dizer a verdade, é pouco confiável, haja vista a ardileza do homem médio e a possibilidade de influência externa no testemunho.
Além disso, quanto aos casos de estupro, quase na maioria a afirmação das práticas delitivas se dá conquanto tenham ocorrido em locais ermos, isolados e, porque não, no próprio seio doméstico, quando presentes somente vítima e agressor, longe de qualquer testemunha.
Não sendo possível a apreciação de outros meios de prova, por final, leva-se em consideração a palavra da própria vítima para buscar a verdade real do ato de violência. Aqui, sendo aceitável tal meio de prova como essencial e de extrema relevância por parte do julgador, mostra o ponto exato da ineficiência do Estado em apurar essas práticas, parecendo mais um ato de desespero em comprovar aos demais populacionais a capacidade em encontrar o culpado, se é que ele exista.
Por entender tratar de delito contra os costumes, o que alega-se é que não seria razoável a vítima expor a própria imagem afirmando ter sido violentada, física ou moralmente, e levada a praticar de forma involuntária conjunção carnal ou outro ato libidinoso, sem que tal afirmativa fosse verdadeira. Talvez, essa justificativa mostra-se a mais absurda e responsável pela maior quantidade de erros judiciários nesses casos.
Sobre isso, importante lembrar do que a criminologia chama de “Síndrome da Mulher de Potifar”. Narra a história que José, homem de confiança de Potifar, capitão da guarda real do Egito, em razão do que a Bíblia apontava em ser um belo tipo de homem, passou a gerar de forma involuntária interesses na mulher de seu senhor, no que passou a convidá-lo a manter com ela relações sexuais. José, homem de princípios, sempre rejeitava a proposta.
Em certa oportunidade, quando não haviam testemunhas presentes, a mulher de Potifar atirou-se em José que, por sua vez, conseguiu escapar. Sentindo-se rejeitada, gritou aos demais servos e, a partir daí, passou a acusar José de ter tentado estuprá-la. Seu marido, Potifar, ao tomar ciência pela própria esposa da acusação de tentativa de estupro, evidentemente sob fúria, mandou encarcerar José, seu homem de confiança.
Novamente, seria um caso de difícil constatação. Em que pese reconhecer a palavra da vítima como de extrema relevância para efeitos de condenação, o que a história mostra é que, sendo o único meio de prova, mostra-se completamente ineficaz, tanto para demonstrar a culpa, quanto a inocência. Revelante mencionar que aqui se busca demonstrar a fragilidade com que a prova é colhida, no que sabe-se ser possível a afirmação da referida conduta criminosa ser, em inúmeros casos, verdadeira.
Conclui-se que, se por um lado é possível reconhecer que nos últimos anos tem ocorrido certo aprimoramento do processo penal nestes casos, o que, em tese, ocasiona a diminuição de suas práticas delitivas, por outro, a apuração do grau de culpabilidade do agressor deixa, ainda, a desejar, não sendo possível outra afirmação a não ser a ineficiência do Estado em solucionar os casos de estupro, quando não há juízo de certeza. No final de tudo, a única certeza é que há grandes possibilidades de condenar o inocente ou absolver o culpado fazendo com que saia impune.
Por Wagner Frutuoso. Especialista em Processo Penal e advogado criminalista.