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O novo decreto de armas e o instituto da novatio legis in mellius

 

O Decreto 9.785/2019, assinado pelo Presidente Jair Bolsonaro, que alterou significativamente a condição de armas e munições que antes eram consideradas de uso restrito e, agora, permitidas, tem suscitado debates a respeito de temas de direito penal que, outrora, passam tempos sem serem utilizados diante de casos concretos. 

No Direito Penal Brasileiro, o instituto da novatio legis in mellius ou, simplesmente, inovação benéfica da lei, está estampado no artigo 2º do Código Penal e assegura que: “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”. Efetivamente, trata-se de hipótese da retroatividade da norma penal que, mesmo já tendo ocorrido trânsito em julgado (quando não mais existe possibilidade de recursos), atinge toda e qualquer pessoa de forma benéfica.

Contudo, há de salientar que existe aqui um impasse, inclusive, gerador das mais variadas discussões dentre os juristas a respeito da possibilidade daqueles que respondem ou já foram condenados pelos crimes de posse ou porte ilegal de arma de fogo ou munição de uso restrito, se seriam beneficiados pelo decreto presidencial.

Isso pois, na verdade, há argumentos contrários no sentido de que essas pessoas não seriam favorecidas por acreditar não ter ocorrido novação legislativa (decorrente de lei), mas a partir de um decreto presidencial, entendendo que não seria possível ser incluído no rol do artigo 2º do Código Penal, além de tratar de norma diferente da principal.

Em uma brevíssima lição, temos que dentre as normas de direito penal, existem as intituladas “normas penais em branco”, compreendidas como sendo aquelas incompletas, indeterminadas, que dependem da complementação de outras. A título de exemplo, utilizamos o próprio “Estatuto do Desarmamento” que, não bastasse os tipos penais elencados no Capítulo IV da Lei, necessitam de outra norma para delinear, por exemplo, os tipos de armas que são de uso restrito e permitido. 

Há, ainda, uma subdivisão, entre essas normas, qual seja, as normas penais em branco homogêneas e heterogêneas. Enquanto na primeira a complementação recai no mesmo nível hierárquico de normas como, por exemplo, uma lei ordinária que complementa outra, nas heterogêneas a complementação ocorre por outro tipo de norma. Se a principal é regida por lei ordinária, a complementar seria por decreto, por exemplo. Poderíamos classificar o Estatuto do Desarmamento como uma norma penal em branco heterogênea, portanto.

Ocorre que, dar o entendimento de que o decreto presidencial não atingiria as pessoas condenadas ou que respondem pelos crimes em tela, isso por simplesmente acreditar que o decreto não há de ser incluído no rol do instituto da novatio legis in mellius, seria afrontar a hierarquia de normas, dando mais importância ao decreto do que a própria lei ordinária, o que sabe-se ser desproporcional. 

Evidentemente, se o Código Penal assegura tal garantia àquele que responde criminalmente ou cumpre pena por ter cometido determinado crime, deve ser extendido a benfeitoria provocada também por um decreto presidencial, mesmo que diferente daquela norma principal. O simples fato de não estar inserido no corpo principal da norma, mas tão somente em outra secundária à primeira, não quer dizer que não deva provocar os efeitos da novatio legis in mellius.

Isso pois, há um sentido maior em aplicar o instituto da novatio legis in mellius a casos concretos. O Código Penal Brasileiro, recepcionado pela Constituição Federal, possui um caráter humanitário, diferentemente de outros países em que de forma alguma lei nova mais benéfica atinge casos pretéritos, como é o caso do Direito Penal Italiano que, por considerar mais importante a força normativa das leis vigentes, deixa de aplicar lei nova mais benéfica a processos que já foram julgados.

Evidentemente que a comparação a outros países como forma de argumentação para que tal instituto não tenha validade no Direito Penal Brasileiro mostra-se desproporcional e sem nenhuma lógica, já que sua validade, antes de mais nada, está condicionada à própria Constituição do país, qualquer que seja ele, por se tratar de pilar soberano. Comparar o Direito Penal Brasileiro ao Italiano, seria utilizar a própria Constituição Italiana como referencial.

Daqui, desdobra-se o fundamento maior pelo qual o decreto presidencial deva atingir qualquer fato pretérito à sua entrada em vigor. Isso pois, a Constituição Federal assegura o que se entende por Princípio da Retroatividade da lei Penal mais Benéfica, estampado no artigo 5º, inciso XL, in verbis, “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.

Sendo assim, não restam dúvidas quanto à literalidade do texto Constitucional neste respeito e, por tratar de norma pela qual se deva considerar seus princípios para qualquer interpretação, não seria possível entender o contrário disso, no que o resultado nãos seria outro, a não ser dar aplicabilidade ao instituto da novatio legis in mellius àqueles condenados ou que respondem por crimes favorecidos pelo decreto presidencial que alterou o rol de armas e munições, antes de uso proibido e, agora, permitidas.

Por Wagner Frutuoso. Especialista em Processo Penal e advogado criminalista.